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Mestres do fogo: as queimadas que salvam vidas no Cerrado

03/11/2025 05:34 G1 — Brasil

Quilombolas fazem queima prescrita na Área de Proteção Ambiental do Jalapão
BBC
Caminhonetes com brigadistas avançam entre labaredas na Estação Ecológica Serra Geral do Tocantins, no Jalapão.
Mas, ao contrário do que se poderia supor, os brigadistas não tentam conter o fogo - foram eles que o provocaram.
"Este aqui é um fogo bom, manso, brando", diz o brigadista Deusimar Cardoso, de 46 anos.
As chamas avançam lentamente e, logo depois que passam, pode-se pisar nas cinzas sem queimar os pés.
Estamos no início de maio, e a cena faz parte de uma queima conduzida pelo ICMBio (Instituto Chico Mendes de Conservação de Biodiversidade), o órgão do governo responsável pela proteção de parques federais.
"Quando for umas nove da noite, este fogo vai morrer sozinho com o sereno", diz Cardoso.
Naquele dia, o grupo executava uma política que está revolucionando a forma de prevenir incêndios no Brasil e é tema do documentário "Mestres do fogo: as queimadas salvam vidas no Cerrado", publicado no canal da BBC News Brasil no YouTube.
A prática consiste em realizar queimadas de baixa intensidade para evitar grandes incêndios no auge da seca, quando o fogo é bem mais destrutivo.
A estratégia busca limitar a quantidade disponível de capim seco, material bastante inflamável presente no Cerrado.
Queimando-se a vegetação dessa forma, diz Cardoso, garante-se que os animais escapem e que a área não seja consumida por um incêndio pelos próximos dois anos.
Isso porque, nesse período, o capim queimado estará em regeneração, ainda verde, e não pegará fogo. Assim, a queima criará nessa área uma espécie de aceiro - uma barreira anti-incêndio.
Depois do segundo ano, o capim voltará a ficar seco e terá de ser queimado outra vez.
Jalapão abriga maior área protegida de Cerrado no Brasil
BBC
Também chamadas de queimas prescritas, as ações costumam ser realizadas no início da estação seca, quando as condições permitem controlar o fogo sem que ele se alastre além do planejado.
Presente na equipe, o biólogo Marco Borges, servidor do ICMBio e chefe daquela estação ecológica há 11 anos, diz que são queimados pequenos trechos de cada vez para que se forme um "mosaico com diferentes idades de queimas".
"Aqui tem espaço para todo tipo de vida: espécies que gostam de fogo com mais frequência ficam numa região que tem mais fogo, e as que preferem menos frequência, em outra", explica.
A estratégia começou a ser aplicada na estação ecológica em 2014. Desde então, Borges diz que os incêndios ali, que antes consumiam até 100 mil hectares em um único evento, hoje raramente alcançam 3 mil hectares.
Conflitos com quilombolas
O morador quilombola Manoel Ramos de Jesus critica órgãos ambientais por terem proibido queimadas no Jalapão
Felix Lima/BBC
Mas o mesmo ICMBio que hoje difunde as queimas controladas adotava uma política de "fogo zero" no Jalapão não muito tempo atrás.
"Foi a pior época que teve", lembra Manoel Ramos de Jesus, de 61 anos e membro da comunidade quilombola do Rio Novo.
Por quase dois séculos, diz Jesus, descendentes de pessoas que fugiram da escravidão viveram isoladas no Jalapão, criando o gado solto na vegetação nativa do Cerrado e usando o fogo para renovar as pastagens naturais.
Até que, a partir de 2001, foram criadas unidades de conservação na região. Hoje elas totalizam 3 milhões de hectares - área pouco maior que a de Alagoas - e constituem a maior área protegida de Cerrado do Brasil.
Jesus diz que o estabelecimento das reservas sobre os territórios das comunidades impactou os modos de vida locais, já que os órgãos ambientais proibiram as queimas e a criação de gado.
"Eles tinham que chegar aqui, sentar com a gente e perguntar, mas eles não fizeram isso", diz Jesus.
"Eles chegaram e disseram 'não vai ter fogo mais, de maneira nenhuma'", afirma.
Jesus diz que muitas famílias resolveram ir embora com seus rebanhos, e as que ficaram tentaram convencer os agentes ambientais de que a estratégia era perigosa. Argumentam que, sem o fogo, o capim seco se acumularia, ampliando o risco de incêndios.
"Foram quatro anos sem o Jalapão queimar", diz Jesus. "Aí, quando queimou, não deram conta de apagar."
O primeiro grande incêndio, segundo ele, ocorreu em 2004. Começou no lixão de uma cidade vizinha e rapidamente alcançou as áreas protegidas, provocando grande destruição.
O morador Deusimar Cardoso diz ter visto vários animais que morreram incinerados naquele incêndio.
"Qual bicho vai conseguir correr 100 quilômetros para escapar de um fogo desses?", questiona.
Mesmo assim, as queimas quilombolas continuaram proibidas - e outros grandes incêndios atingiram o Jalapão nos anos seguintes.
Na comunidade quilombola Rio Novo, o morador Tadeu Ribeiro Alves diz que uma vizinha morreu em 2014 após passar vários dias combatendo um incêndio que se aproximava das casas. Ele diz acreditar que ela se intoxicou com a fumaça, embora a causa da morte jamais tenha sido divulgada.
Outro incêndio quase destruiu a casa de Alves. "Se não fosse um filho meu estar em

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