Mural da Cidade
Tudo que você precisa saber sobre as cidades do Brasil em um só lugar

'Coisas presentes demais': em livro sobre Alzheimer da avó, Flávia Peret costura retalhos de memória com assombrosa delicadeza

22/10/2025 17:33 O Globo — Rio

'Coisas presentes demais'
Autora: Flávia Péret Editora: Relicário. Páginas: 188. Preço: 65,90. Cotação: ótimo.
Em dado momento de "Coisas presentes demais", Flávia Péret se questiona: "Quando enfiava a agulha no pano e a puxava do outro lado, a avó pensava em quê?" De certa forma, o livro todo é a busca de repostas possíveis para essa pergunta.
Autora de "10 poemas de amor e de susto" (2017), "Mulher-bomba" (Urutau, 2019) e "Instruções para montar mapas, cidades e quebra-cabeças" (2021), em seu novo livro Flávia transforma a perda em gesto de lucidez. Oscilando entre diário, memória e ensaio, a narrativa parte do confronto entre a neta e a avó — uma mulher vaidosa, autoritária, fascinante — cuja memória se dissolve com o Alzheimer. Mas, neste registro iniciado em plena pandemia, quando os sintomas se tornam evidentes, a escritora não se contenta em descrever a doença: ela a descostura, linha por linha, até que o "mal" se torne metáfora para o ato de lembrar e escrever.
Logo nas primeiras páginas, Péret cita um verso de Tamara Kamenszain, tirado de um livro que a poeta argentina escreveu sobre o Alzheimer de sua mãe: “ante um estado de coisas presente demais”. O excesso de presente — esse tempo contínuo em que nada mais se fixa — é o que a autora tenta domesticar pela linguagem. Construído em fragmentos curtos, o livro tem ritmo de rememoração: cada seção é um retalho de consciência, uma tentativa de capturar o instante antes que ele se desfaça.
O registro surge como gesto ético e estético. Péret confessa: “Ao entrar no jogo da escrita e aceitar sua natureza ingovernável, me vejo não apenas espelhada na mulher que pariu minha mãe, como entrelaçada a uma condição humana comum.” O texto não busca vingança ou redenção, mas compreender o que ainda permanece na avó — inclusive o que há de mais incômodo. Ela é narcisista, cruel com as empregadas, crítica das roupas e penteados das netas. Flávia não a edulcora, e é justamente nesse olhar sem piedade que a ternura se infiltra.
Chocolate no bolso
Há passagens de assombrosa delicadeza. Quando a narradora descreve a avó colocando uma barra de chocolate no bolso do bisneto (“Deixa, boba, menino gosta de doce”), o gesto banal se torna um eco daquilo que a doença ainda não conseguiu apagar: o impulso de cuidar. Ou quando cita seus "crushes": Juscelino Kubitschek, Ivo Pitanguy e Roberto Carlos (a epígrafe do livro vem da canção "Detalhes": "não adianta nem tentar me esquecer"). Em outra passagem, a autora sintetiza o dilema da personagem: “A avó tinha um único medo: envelhecer. De certa forma, o Alzheimer é uma proteção que impede que ela veja a própria degeneração.”
Ao longo da jornada, a autora procura iluminar seu caminho com leituras de Susan Sontag, Maria Rita Kehl, Roland Barthes e o podcast de Drauzio Varella. Com o historiador Peter Stalybrass, de "O casaco de Marx", ela aprende que a roupa puída é, na linguagem técnica da costura, aquela que tem "memória". E conclui: “Andar, descer escadas, sentar-se numa cadeira, apoiar os braços em cima da mesa, deitar em uma cama para dormir, lavar dezenas de vezes uma mesma roupa. Todos esses gestos produzem memórias.” A neta não apenas recorda: refaz, com o tecido da escrita, o cotidiano da avó. Costurando fios, Flávia transforma o desaparecimento em presença. Cada fragmento é um pequeno ato de resistência à dissolução da memória, e cada lembrança recuperada reconfigura o passado.
A força do livro também vem de uma tensão entre o pessoal e o político. A avó foi uma mulher que “encarava o olhar do outro” (do marido, da sociedade da cidade mineira de Mariana) nas décadas em que isso ainda era considerado insolência. Péret resgata essa postura como uma herança, ainda que dolorosa: o impulso de afirmar-se diante de um mundo que tenta enquadrar o feminino.
O desfecho é de aceitação. No fragmento final, a avó posa de óculos escuros, com uma taça de espumante, já com 86 anos. A neta percebe que aquela pose, antes interpretada como delírio narcisista, era, na verdade, um gesto de verdade. A avó não fingia ser exuberante, ela era. "Coisas presentes demais" é uma aula sobre o poder da linguagem de sustentar o que a memória já não pode.
Agenda carioca
A autora mineira vai participar de eventos no Rio nos próximos dias. Na quinta (23), Flávia Péret estará na Faculdade de Letras da UFRJ, no campus do Fundão, com um seminário às 9h e uma oficina às 14h (basta chegar e participar). Na sexta (23), estará no Sofázin (Av. Gomes Freire, 625, 3º Andar). No sábado (24), na Janela Livraria (Rua Maria Angélica, 171b, Jardim Botânico), participa de uma roda de conversa com Danielle Magalhães, Luiza Leite e Tais Bravo, com mediação de Cláudia Lamego, seguida de sessão de autógrafos.

Fonte original: abrir